PLAYLIST DA HISTÓRIA:
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Apesar de não enxergar um palmo à sua frente, Paula sabia que estava presa. Podia sentir o frio metálico dos grilhões contra os pulsos e os tornozelos. Pôs-se de pé e avançou às cegas, segurando a respiração durante os três únicos passos que a corrente que limitava seus movimentos lhe permitiu. Não fazia ideia de onde estava, sequer lembrava como tinha parado ali. Um ruído atrás dela a fez virar-se e, a despeito de todos os filmes de terror que já havia assistido, saiu de sua boca sem que pudesse evitar:
— Olá? Tem alguém aí?
A risada que obteve como resposta estava repleta de um misto de tristeza, sarcasmo e raiva. Antes que pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, duas mãos apertaram seu pescoço, sufocando-a. Debateu-se inutilmente, sem ser capaz de libertar-se.
Acordou com um grito, o suor impregnando lençóis, fronha, pele e alma.
— Puta merda, Paula!
Apesar de conjurada entre dentes, a frase continha todo o ressentimento, ódio e desprezo que Paula cultivava contra si mesma. Respirou profundamente durante os breves segundos seguintes. Depois atirou as cobertas para o lado, sentou na cama e lançou um olhar para o relógio analógico, praticamente uma raridade. Os ponteiros mostravam que ainda faltavam alguns minutos para sua hora de despertar. Tempo. A única coisa que não lhe faltava. A voz de Renato Russo soou fantasmagórica em sua mente:
Afastou os pensamentos e focou na realidade igualmente depressiva, mas palpável o suficiente para movê-la. Da maneira automática que lhe era costumeira, levantou da cama e se dirigiu para o chuveiro.
∞
Paula era professora universitária, dava aulas de Economia Política, disciplina de primeiro semestre da Graduação em Direito. Aquele era o primeiro dia letivo do ano e ela já se preparava psicologicamente para encarar a nova turma que a esperava. Um dos poucos prazeres de sua vida era dar aulas para os calouros, pois a jovialidade deles ativava nela boas recordações, lembranças do efêmero período de sua vida em que tinha sido feliz ao lado de Vanessa, seu grande e único amor. Já havia se passado vinte anos.
Vanessa e Paula conheceram-se no colégio, ambas com dezesseis anos. Apaixonaram-se e viveram um romance arrebatador, que durou até o pai de Vanessa descobrir tudo. Osvaldo era um homem machista, lesbofóbico e autoritário, ao flagrar as duas na cama, arrancou, a tapas, a filha de cima de sua namorada. Após isso, enviou Vanessa para estudar no exterior. Paula se despedaçou, principalmente pela impotência que sentiu diante da situação. Queria ter tido forças para tirar sua amada das garras daquele homem horrendo e levá-la para longe, mas era apenas uma garota. Não pôde sequer se despedir de Vanessa. Chorou por dias e noites, durante muito tempo, até que foi se conformando. As duas estavam próximas a atingir a maioridade e decidiu que quando isso acontecesse, iria até o fim do mundo para encontrar Vanessa e viver aquele grande amor.
No entanto, as coisas não correram como planejara. De um modo cruel e irônico, a espera, a hesitação e a cautela tinham lhe custado exatamente o que Paula mais temia perder. Sentir-se abandonada foi mortal para Vanessa, que mergulhou em uma depressão profunda que a levou ao suicídio.
Quando tomou ciência da morte de sua amada, foi a vez da própria Paula morrer. Só que sua morte foi muito mais cruel, pois continuou viva. A perda de Vanessa a transformou. A garota que antes exibia um sorriso leve e transbordava carisma, acabou se tornando uma jovem mulher amargurada, solitária e triste.
Paula precisou engolir em seco aquela dor. Além da saudade, carregava o peso da morte de Vanessa nas costas. Dali em diante, não se permitiu mais fazer planos, muito menos se envolver com qualquer outra pessoa. Arrastava-se, dia após dia, inteiramente à mercê de uma letargia que a conservava à margem de tudo. A simples ideia de qualquer satisfação ou felicidade era impossível, algo que sequer cogitava.
Todas as manhãs, mantinha um ritual secreto, que jamais confessaria a ninguém, pois tinha plena consciência do quanto pareceria mórbido, mesmo ao olhar da pessoa mais compreensiva. Com os lábios colados ao retrato, único que possuía da eterna namorada, buscava não somente o delicado e bem desenhado rosto da amada, mas o martírio e a culpa a que diariamente se submetia.
— Vanessa, meu amor... Eu te amo... Vou te amar pra sempre... Infinito...
Muitas vezes tinha pensado em dar um fim àquilo e teria feito, se a própria covardia e o fato de achar justo sofrer e padecer a ausência de Vanessa não a impedissem. A mesma incapacidade que a impossibilitara de salvar a namorada a segurava, miseravelmente imersa em uma existência vazia, que não podia realmente chamar de vida, mas que era exatamente o que julgava merecer.
Naquela manhã, como de praxe, dirigiu todo o caminho até a universidade imersa em suas lembranças. Só acordou de sua regressão ao estacionar o carro. Precisou secar as lágrimas e retocar a maquiagem desfeita antes de seguir para sala dos professores. Cumprimentou rapidamente os colegas, tudo muito formal, pois não fazia questão de cultivar amizades. Rumou à sala de aula e, sem mais delongas, iniciou o trabalho.
Cerca de dez minutos depois, foi interrompida pelo barulho da porta, que abriu de supetão. Olhou naquela direção e sentiu o coração parar de bater por um segundo. Não fossem os estudantes universitários tão descomprometidos com a pontualidade, poderia jurar que o atraso da menina havia sido proposital, pois quando a porta da sala se abriu, todas as atenções se voltaram para ela.
Paula não podia acreditar no que estava vendo. Era surreal, simplesmente inacreditável. A garota na porta não era apenas parecida com sua Vanessa, ela tinha a mesma expressão, o mesmo olhar marcante e profundo, embora tímido, quase recatado, de quem não se dá conta da beleza e do poder de sedução gratuitos que possui. Paula ficou em choque, completamente estática.
Óbvio que não era a primeira vez que via Vanessa... Em outro rosto ou em espaços vazios, como uma assombração que a acompanhava. Piscou, tentando fazer com que a alucinação desaparecesse, como de hábito. Ao contrário de todas as outras vezes, a ilusão não se dissipou, continuou parada em sua frente, fitando-a, parecendo igualmente hipnotizada. Por um instante derradeiro, Paula desejou que o espírito de Vanessa tivesse vindo buscá-la, afinal. Ou que a loucura tivesse dominado suas faculdades mentais por completo, proporcionando-lhe o alívio que tanto necessitava.
Ao invés disso, foi arrancada de seu devaneio quando, inteiramente alheia à sua perturbação, a jovem real – ainda parada na porta da sala, vestindo calça jeans e uma camiseta preta com a frase “Seja quem você quiser.” escrita em letras brancas –, justificou-se:
— Professora, desculpe pelo atraso e por interromper. É o meu primeiro dia... Acabei me perdendo no campus.
Paula engoliu em seco. Fosse qualquer outro estudante, teria dado uma resposta mal-humorada, mas ao perceber o quanto a aparência daquela caloura retardatária se assemelhava a da mulher que amava mais que a si própria, perdeu completamente sua capacidade cognitiva. E seu comportamento estranho não passou despercebido pela menina, que mesmo sem nunca ter visto a professora, notou que ela não estava em seu estado normal. Preocupada, perguntou:
— Professora, tudo bem?
Enquanto falava, a garota caminhou até Paula – que, naquele instante, mais parecia uma estátua de cera – e tocou seu ombro. O toque foi casto, inocente, mesmo assim, no momento em que o sentiu, o corpo de Paula foi tomado por uma descarga elétrica que fez suas pernas falharem. Quase desfaleceu, mas a garota impediu, abraçando-se a ela. Mais de perto, Paula percebeu ainda mais semelhanças entre a aluna e a sua Vanessa. Chegou a sentir vertigens ao inalar o perfume da menina, pois poderia jurar que até o cheiro era o mesmo. Quase a agarrou ali mesmo, no meio da sala de aula, mas em um fio de lucidez, tratou de se recompor. Agradeceu a ajuda e se desvencilhou dos braços da aluna. O correto depois dali seria retomar a aula, no entanto, estava dominada pela necessidade de saber mais:
— Eu estou bem, obrigada. Quem é você?
— Bruna.
Não era a reposta que Paula queria ouvir.
Bruna... muito vago. Tem que haver alguma ligação. Uma sobrinha, talvez? Mas Vanessa era filha única. Quem sabe uma irmã? Bruna não deve ter mais de dezoito anos...
De nada adiantava ficar conjecturando. Só havia uma forma de descobrir, por isso, perguntou:
— Bruna do quê?
A despeito da vontade insana que estava sentindo de tomá-la para si, o tom de Paula soou imperativo, beirando a arrogância. Isso fez Bruna se retrair e dar uma resposta gaguejada:
— Pra.. Prado... Bruna Prado.
O sobrenome da garota não remetia a nada relacionado à Vanessa ou sua família.
São apenas parecidas. Não há qualquer relação entre as duas.
Dali em diante, Paula achou por bem afastar da mente aquela ideia absurda. Foi quando se deu conta de que a sala inteira estava estática, assistindo à cena. Decidiu retomar a apresentação do curso, mas antes de conseguir, Bruna inquiriu constrangida:
— A senhora vai permitir que eu assista a aula?
A garota estava visivelmente desconfortável com a situação. Paula se sentiu mal, não era a professora mais amada pelos alunos, mas, apesar de um pouco temida por sua rigorosidade, não fazia o tipo megera. Por isso, tratou de amenizar as coisas. Forçando um sorriso e um tom casual, respondeu:
— Claro, não se preocupe. Atrasos no primeiro dia são absolutamente normais. O que não tolero é a reincidência deles. Por favor, Bruna, tome assento e sinta-se bem-vinda.
Não tirou a atenção de Bruna durante a aula inteira. Tentava ao máximo disfarçar o olhar, mas sabia que estava falhando miseravelmente na tarefa. Percebeu a aluna constrangida e tentou desviar o foco. Resolveu passar uma atividade em grupo para a turma, assim, pô de ficar livre para entrar em sua máquina do tempo particular e pensar à vontade em Vanessa.
∞
Nos dias que se seguiram, o encantamento de Paula por Bruna apenas aumentou. A cada gesto, a cada palavra, a cada olhar da aluna, Paula percebia ainda mais semelhanças dela com Vanessa, e isso aquecia o seu coração.
Bruna, embora tímida, parecia gostar bastante da atenção que a professora dispensava a ela e, aos poucos, para a alegria de Paula, foi se tornando uma aluna bastante participativa.
Com o passar do tempo, as trocas de olhares foram ficando mais frequentes. Normalmente era Paula quem olhava primeiro, mas não fazia de propósito, era apenas mais forte do que ela. Surpresa de verdade foi perceber que a cada dia Bruna a correspondia com mais intensidade.
Embora tivesse ciência de que Bruna e Vanessa não eram a mesma pessoa, a simples presença da garota a fazia querer sorrir. E era a primeira vez, em vinte anos, que a dor lancinante que sentia no peito dava sinais de que cessaria. Mas a simples possibilidade de sentir alegria ou felicidade torturava Paula. Cada vez que chegava em casa, um novo ritual se repetia. Pegava a foto de Vanessa e, de joelhos, pedia perdão a amada em meio a soluços. Em uma das inúmeras vezes em que se encontrava mergulhada nesse martírio, o ódio que sentiu de si mesma e da própria fraqueza foi tão grande que se esbofeteou. O primeiro tapa teve o poder de esvaziar um pouco a angústia que sentia, o segundo trouxe a satisfação de purgar o remorso, o terceiro a fez ter certeza de que arrepender-se não era suficiente. Acima de tudo, precisava punir-se.
Praticamente correu até o notebook. No site de busca, digitou uma única palavra: chicote. O resultado não foi, nem de longe, o que procurava: “tudo para fetiches e sado, vibradores e lingeries”. Mais inesperado ainda foi dar-se conta do quanto aquilo a deixou excitada. A imagem de Bruna apenas de calcinha, segurando um chicote de couro formou-se em sua mente de uma maneira incontrolável. Deixou escapar um gemido, misto de dor e horror por estar profanando o pouco que lhe restava, e correu de volta para Vanessa. Novamente de joelhos, para a imagem de seu verdadeiro e único amor, implorou:
— Perdão, meu amor... perdão...
Em vão. Pois não existia redenção para a quebra de fidelidade que a contaminara, estava estabelecida e aguçava cada um de seus sentidos.
∞
Era sexta-feira, dia em que a maioria dos estudantes matavam a última aula. Após o sinal tocar, os poucos remanescentes imediatamente se apressaram em sair. A única exceção foi Bruna, que passou mais tempo do que precisava arrumando a mochila. Paula limpava o quadro sem se dar conta da presença da garota. E foi apenas quando o aroma delicioso do perfume de Bruna invadiu seus sentidos que percebeu que não estava sozinha. Como que atraída por um imã, virou-se imediatamente e deu de cara com a aluna a poucos centímetros de si. Tremeu da cabeça aos pés. A única vez em que haviam ficado tão próximas fora naquele primeiro dia de aula, mas na ocasião o olhar de Bruna não estava tão intenso e nem tão escuro.
Paula podia jurar que Bruna a estava devorando com os olhos, mas preferiu acreditar que a ideia era absurda, afinal, Bruna era uma garota linda, jovem, cheia de vida, e ela era só um resto de mulher, que carregava consigo um semblante amargo e sofrido. Era bonita, mas não via a menor graça em si mesma. Não sentia prazer em se arrumar, em se pentear, em se maquiar... Fazia tudo de modo automático, de qualquer jeito. Não, em sua cabeça, aquilo era impossível. Em que universo paralelo Bruna poderia se interessar por ela?
Continuaram se encarando em um silêncio enlouquecedoramente estridente. Paula estava reticente, buscando demonstrar uma calma que absolutamente não sentia, já que cada terminação nervosa de seu corpo faiscava em antecipação. Estava totalmente extasiada com aquela proximidade. Mas a despeito disso buscou manter-se impassível, pois temia que o menor gesto fosse mal interpretado pela aluna.
Bruna, em contrapartida, não fazia questão alguma de disfarçar a ansiedade. Seu olhar gritava em súplica, implorando por alguma atitude de Paula, que não acontecia nunca. Cansada de esperar, decidiu se manifestar:
— Por que você me olha assim?
A pergunta pegou Paula completamente de surpresa. A professora não poderia jamais admitir o real motivo de seu encantamento pela garota, por isso, tudo o que foi capaz de fazer foi desconversar:
— Do que está falando?
Mas notou que falhou miseravelmente na tentativa de desconversar, pois Bruna insistiu:
— Desde o primeiro dia de aula, você me olha de um jeito que...
Flagrada!
— Que...?
O coração de Paula, àquela altura, já estava na glote. Nem sabia mais como respirava. Quis sair correndo, mas seu corpo não reagiu ao comando do cérebro.
Já Bruna, parecia extremamente empenhada em levar a conversa adiante:
— Não sei, me deixa intrigada, curiosa...
— Curiosa?
— Sim, é como se tentasse me reconhecer.
Paula sabia que não conseguia disfarçar bem os olhares, mas não fazia ideia de que estava sendo tão descuidada. Não lhe restou mais nenhuma alternativa, teve que assumir:
— Tá, me pegou. Você é muito parecida com uma pessoa que conheci.
— Sério? Quem é? Fala, de repente eu conheço também.
— Impossível. Ela morreu antes de você nascer.
Bruna percebeu a dor no olhar da professora. Lamentou momentaneamente por ter causado aquilo, por isso, falou sinceramente:
— Sinto muito!
— Eu também.
Mas rapidamente o desejo e a ansiedade característicos de sua idade voltaram à tona, principalmente após se dar conta de que havia grande possibilidade de não estar enganada. Paula a queria mesmo. Assim, pôs o bom senso de lado e perguntou:
— Era sua namorada?
— Por que quer saber isso?
— Porque você me olha com desejo.
Paula arregalou os olhos, ruborizou. Não esperava que aquela menina aparentemente tão tímida fosse capaz de tamanho atrevimento. Pensou rapidamente sobre a situação e concluiu que era completamente inadequada. Mas negar não adiantaria nada, por isso, optou por se desculpar:
— Desculpe, não tive a intenção de te constranger.
— Quem disse que constrangeu? Eu gosto. Não sei o porquê, mas gosto do jeito que você me olha. — Fez uma breve pausa enquanto dava mais um passo na direção da professora, encarando-a fixamente. — Fico excitada! — completou.
Paula precisou puxar forte o ar antes de conseguir falar, em um fio de voz:
— Bruna...
— O que foi?
Mais um passo, e as mãos de Bruna alcançaram o rosto de Paula. Ela o acariciou de uma maneira que era tão suave quanto provocante. O corpo de Paula se acendeu instantaneamente, mas a mente ainda estava no comando:
— Você é minha aluna.
— Ahan, e você é minha professora... Que me faz sentir tesão a aula inteira.
Dali em diante, Paula não foi mais capaz de resistir e, sem dar a menor importância para o fato de estarem na sala de aula, puxou Bruna para si e a beijou com desejo, sofreguidão, quase desespero. A garota a correspondeu com a mesma voracidade. Estava maravilhada, completamente inebriada por aquela mulher vinte anos mais velha. A postura de Paula, altiva, imponente, praticamente uma figura inalcançável, mexia com as mais profundas fantasias de Bruna, fazendo com que se entregasse sem reservas a ela.
A mente de Paula a traía, pois embora tivesse ciência total do que estava acontecendo, em alguns momentos parecia ter sido transportada para vinte anos antes. Tanto que, entre beijos, chegou a sussurrar:
— Vanessa...
No mesmo instante, percebeu a confusão. Absurdamente constrangida, afastou os lábios dos de Bruna, segurou seus ombros e a encarou, antes de falar:
— Desculpa, Bruna... Desculpe, eu...
— Shhh... Eu não ligo. Posso ser a sua Vanessa, se quiser. Fique à vontade.
OBS IMPORTANTE: Este romance foi publicado pela Editora Delas (em versão digital/ebook da Amazon, está no Kindle Unlimited), por isso SÓ FICARÁ DISPONÍVEL AQUI O PRIMEIRO CAPÍTULO PARA DEGUSTAÇÃO.